Daí, ela foi gestada, aguardada, planejada. Mil expectativas fizeram para vida dela, e ela, coitada, nem imaginava que antes mesmo de vir a olhar o brilho do sol, sentir o cheiro da epiderme da mãe, a sua vida já havia sido predestinada.
Ela então, nasceu, e igual a toda criança, chorava e esperneava ainda sobre as mãos do seu médico ou de sua parteira. Se pudesse lembrar do que pensava, talvez hoje falaria que naquele momento pensava verberações como "que mundo é esse?", "onde vim parar?", "que pessoas são essas?", "que cheiro de álcool, é esse?". A vida se mostrava pra ela, e já prenunciava que para sarar, antes ela poderia fazer arder.
....Passados alguns instantes, no colo de sua progenitora, ela hibernou.
Ela, de bebê tornou-se criança e no seio familiar tudo era lindo, sereno e como tinha de ser, sentia ela, que ali, entre aquelas pessoas, se encontrava o seu aconchego no mundo. Pois a cada milésimo de segundo o amor nelas se mostrava, enfeitava e organizava.
Na adolescência, ela foi o bálsamo dos pais. Ela simplesmente não foi uma "aborrecente", não teve essa tal rebeldia esperada desse tempo da vida. No mais, ela continuava com determinados espantos pra vida, e pro mundo. Mas, o que de bom lhe ensinaram, havia criado raiz.
Ela vez em quando sentia ferir, mas ela lembrava do álcool.
Lembrava e até confusa ficava, pensava "minha familia é o meu mundo, ou sou eu o mundo da minha família" .
Mesmo em sentimento de tão grande pertença, algo diferente do esperado acontecia. Não no vizinho, na tia, na mãe, no pai, ou em seu irmão. Acontecia dentro de si, e ela sempre curiosa, começou a estudar, buscar razões para aquilo que a fazia diferente. Era de se esperar que ela fosse enfim, rebelar-se, mas não, ela continuava calma, mesmo confusa, mesmo curiosa. Ela sempre foi muito dona de si. E quando as feridas das piadas, dos cochichos e até dos conselhos que a ela não se encaixavam, ela lembrava que arder faz parte do álcool.
Com tempo, este rígido senhor das mudanças, as certezas se esvaíram, e ela começou a perceber que as expectativas e as promessas, tudo de nada valia, pois essas que haviam feito pra ela antes d'ela nascer, obviamente, não levaram em base, seus gostos, seus domínios, sua vida e o principal seu Eu. E isso fez, tudo, eu disse tudo, que ela considerava um aconchego transformar-se em pó, em nada. E ela teve de se reinventar. E se reinventou.
Hoje, adulta, ela já tem uma casca, criada sobre lágrimas, drogas lícitas, livros e músicas. Ela é robusta. Não se importa mais de ser o "viadinho da rua, da escola, ou do trabalho". Não se importa de ser a "sapatão couro grosso" dos bares, e dos alambiques. Isso não a afeta mais. Isso não consome mais seu sorriso. E com outros tantos ela comunga, por vidas parecidas, ou por gostos congruentes.
Hoje, ela também milita, mas, não somente por ela. Ela milita todo dia, sente que luta principalmente pelos os que ainda virão. Pelos os que ainda em gestação já têm suas vidas desenhadas e expectativadas; por aqueles que ainda não sabem, mas entrarão em um mundo que dá algumas pequenas gratificações, em uma enormidade de tensões.
E daí que ela hoje ri porque quer rir, faz quando assim quer fazer, canta porque quer cantar. Ela é a dona de si. Aprendeu que cada obstáculo, fez dela no fim mais forte. Pra ser a Fanta, a Coca, a Pepsi ou que ela bem quiser. Ela é ela, por si só, plena e humana. Ela é humana. É desse mundo. E dessas certezas, ela nem em sonho permite ninguém tirar.
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