Foi por graça de Deus, para os espiritualizados, ou pelo destino, para os materialistas, que no último dia 22 de novembro de 2022 falecessem dois cantores que encantaram as noites de serenata e os bares de Caxias. Vitimados por enfermidades naturais, saíram de cena, no mesmo dia, o cantor/compositor Erasmo Carlos, um dos ídolos da jovem guarda, aos 81 anos, no Rio de Janeiro, e o nosso José Murilo Cunha, filho da terra e membro da Velha Guarda Caxiense, aqui na Princesa do Sertão Maranhense, também aos 81 anos. E para que os dois não fizessem a última viagem juntos, também o cantor cubano Pablo Milanez, que faleceu na Espanha por causa de problemas na saúde, aos 79 anos.
Se o Erasmo vai deixar saudade entre os seus admiradores e amantes da boa música pautada no rock, no romantismo, na sensualidade e nas causas ambientais, e Pablo Milanez com a sua esplêndida “Yolanda”, Murilo Melancia, mais conhecido como Murilo Boemia pelos amigos, foi embora levando consigo a distinção de ter sido um dos maiores boêmios cantores da cidade do poeta Gonçalves Dias.
E não foi um boêmio de caráter malandro, mas uma pessoa de comportamento invariavelmente cordato e respeitoso com seus semelhantes, que valorizava tanto o gosto de saborear uma boa bebida com os confrades quanto por deliciá-los com velhas músicas do cancioneiro nacional, sempre disposto a oferecer, quando havia oportunidade e a inspiração era despertada, músicas de Anísio Silva, Ataulfo Alves, Altemar Dutra, Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Jamelão, Orlando Silva, e tantos outros bambas do canto, sob o acompanhamento sempre primoroso e refinado do violonista mestre Hilter, nos últimos anos.
Assim como Erasmo Carlos, que embalou o sonho de muitos jovens com a sua criação “Sentado à beira do caminho”, do final dos anos 1960, Pablo Milanez com sua “Yolanda”, Murilo, nos últimos meses, já não dava o ar da graça de cantar para os amigos.
Erasmo e Pablo, porque a música contemporânea e as emissoras de rádio e TV cuidaram de providenciar-lhes um inexplicável ostracismo. Murilo, por conta de um grave incidente que atingiu sua família e lhe legou a perda de um neto dileto. Logo ele, que por muitos anos procurava se recuperar de outros dois passamentos anteriores que, se não fora uma pessoa forte, há muito teria sucumbido.
A fortaleza e esse seu lado taciturno somente era conhecido pelos familiares e os amigos mais chegados, mas tudo se transformava quando a companhia de um violão pedia a sua palavra, e aí o vozeirão ritmado e singular irrompia, com tanta emoção, que poucos podiam acompanhar sua esplêndida performance.
Também pudera. O servidor público do extinto DER-MA e do SAMAL, em outros tempos, rivalizara com outros cantadores de peso que também passaram aqui pela terrinha, protagonizando músicas apaixonadas, como Itaporan Maranhão, Francisco Antunes, João Fodinha, Siqueira, Pedro Avião e mesmo Sérgio Torres, todos também já falecidos.
Se o Tremendão Erasmo Carlos legou aos brasileiros jovens de sua época uma música marcante apoiada no rock, o Murilão foi, como ninguém, o cantor das grandes fossas que roubavam o sono das almas apaixonadas e enebriadas nas serenatas caxienses.
Vai ser difícil para quem vive por aqui passar diante do bar do Excelsior Hotel, do bar do Cantarele, ou do bar do Pereirinha, lugares onde invariavelmente aparecia diariamente nos últimos dias, procurar com o olhar e constatar que o velho trovador já não existe mais e agora é apenas uma lembrança. Afável, diga-se de passagem.
Como todo jovem de sua época, gostou muito de jogar e brilhar no futebol, brincar o carnaval, mas era adepto também do fisiculturismo e apreciava um boa cavalgadura, montando garboso um vistoso garanhão pela cidade. E fora um jovem que não costumava levar desaforo para casa, se se sentisse ameaçado ou estivesse em defesa de pessoa ofendida.
Valorizava muitos os amigos e prezava esse tratamento de maneira sempre carinhosa e respeitosa. Entretanto, a força da natureza levou a maioria pelo mesmo caminho que sua alma ascendeu a partir de um leito hospitalar na sua adorada Caxias.E os que sobrevivem, com certeza ficarão amargurados por não mais divisarem o sorriso acalentador da sua recepção festiva, posto que era assim que se sentia quando revia aqueles a quem apreciava.
Abatido por várias enfermidades de tratamento irreversível, o nosso conforto é saber que os últimos dias do Boemia foram no leito hospitalar, onde, finalmente, guiado por mãos de bons médicos e profissionais dedicados, lá no Hospital Macrorregional de Caxias, ele pode, finalmente, descansar e partir sossegado.
Erasmo, Pablo e Murilo não mais estarão sentados à beira do caminho que não tem mais fim. Deles restará somente a boa lembrança. Os dois primeiros, através dos discos e CDs, e, do último, pela memória oral e se algum camarada caxiense conseguiu armazenar alguma música da sua predileção em gravação autônoma.
Que estejam, portanto, em um lugar bem melhor, pois sabemos que no universo nada se cria ou falece, apenas se transforma. E, para os que ficam, continuar na luta, pois a vida segue!
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