Uma das palavras mais em voga nesse momento de pandemia, a que mais se ouve por onde se passa, e também nos meios de comunicação, redes sociais etc, é o substantivo feminino fiscalização, que os dicionários traduzem como ação ou efeito de vigiar, examinar, verificar, expressão que vai sendo aplicada aos quatro ventos, por questão de ordem, por denúncia, por via judicial, dentre muitas outras acepções à sua aplicação dentro de uma comunidade.
Por conta do novo coronavírus (Sars-Cov-2), e também diante da iminência de suas novas variantes também aportarem em Caxias, fato que caracterizaria também entre nós uma terceira e mais perigosa onda da crise sanitária que grassa no país, nunca se ouviu tantas pessoas a usarem, na tentativa de guardar distância da doença e das suas consequências muitas vezes fatais. Agora a expressão está ligada a outro substantivo feminino, aglomeração, que em essência significa o ato ou efeito de juntar-se, misturar-se, grande quantidade de pessoas ou de coisas.
Em outras épocas, a aglomeração sempre foi uma situação vista como saudável, já que estava ligada a algo para o qual muita gente concorria para dar certo, como os comícios políticos, os bailes de carnaval, as procissões religiosas, as competições esportivas, as micaretas dos carnavais fora de época e os festejos juninos. Tais eventos estavam consolidados e caíam na graça popular, se houvesse muita gente, embora de forma organizada. Então, sem público em grande monta, não se tinha nada, ou melhor, era a resposta precisa que determinada pretensão não dera certo, um indicativo para mudança de perspectiva ou de rumo, em qualquer investimento.
Entretanto, veio o Covid-19, e graças a ele passou-se a entender que a palavra aglomeração não é mais algo que se assuma como sucesso. Muito pelo contrário, pode significar doença e uma grande possibilidade da vida não acabar bem e ter-se que deixar abruptamente o mundo, inclusive com alta probabilidade de levar consigo familiares e amigos. A propagação da enfermidade viral transformou as duas palavras antes conciliáveis em peças dissonantes, não mais desfrutando da harmonia a que estavam acostumadas.
Na verdade, percebe-se que as duas chegaram mesmo até a ser cúmplices em determinadas conjunturas. Para uma aglomeração ser bem sucedida, por exemplo, é sempre necessário que se exerça alguma fiscalização para que o caldo não entorne e as coisas fujam ao controle. Da mesma forma, para a sociedade se manter viva, e a sociedade caxiense, como tal, é uma aglomeração de pessoas, então, porque não as estamos vendo tão próximas nesse momento, se o empreendimento, fiscalizado, com vacinação e cumprindo os protocolos sanitários, só tem esse caminho a percorrer, para se manter saudável e vivo?
Pois é, esse impasse que somente agora começa a preocupar mais as autoridades, dada a dificuldade de fiscalizar para não aglomerar, e, assim, preservar vidas, tem a sua origem num fator ignorado pela maioria das pessoas, mas que ganhou relevo na equação, pelo menos aqui em Caxias, quando se constata que a palavra fiscalização hoje pode ser traduzida pelo substantivo insignificância. Quer dizer, uma besteira que ninguém respeita, tanto que é o que se observa em praticamente todas as atividades do cotidiano, em nosso município.
Ora, mas como isso aconteceu? Por que a visão das pessoas deixou de ver a utilidade que as palavras fiscalização e aglomeração tinham em comum? Talvez ninguém tenha percebido, mas outro substantivo feminino, sorrateiro, denominado leniência, comportamento que leva as pessoas a uma postura complacente e branda diante dos fatos da vida, passou a fazer parte do cotidiano da cidade.
Importado pelo populismo da política para sustentar tronos democraticamente alicerçados em mandatos eletivos, seu raio de ação cresceu tanto, que já se tornou fato comum no âmbito das administrações públicas, e seus tentáculos caminham para dominar também o ambiente familiar, as ruas, as praças, preparando as gerações que se sucedem para o objetivo da desobediência e da desconsideração.
A presença acentuada desse ingrediente, em Caxias, deixou grande número de pessoas como em estado catatônico, sempre a olhar primeiro para o próprio umbigo e sem se importarem com os problemas do próximo e da própria cidade. Não é de admirar que as pessoas achem banal, agora, furar um sinal de trânsito, estacionar em local proibido, dirigir em velocidades perigosas, jogar lixo nas ruas, ocupar as praças como postos de comércio, fumar maconha ou usar outras drogas abertamente nas ruas, abusar de aparelhagens sonoras, assaltar ou até tirar a vida de outrem, pela certeza da impunidade, porque ninguém liga, sem falar de outras leviandades que, sem fiscalização, atazanam e geram conflitos diários.
Então, seria admirável que nesse cenário a palavra fiscalização ainda encontrasse abrigo. Não, ela enfraqueceu tanto, que mesmo diante desse momento dificílimo da vida humana, quando vivenciamos uma pandemia letal que, só no Brasil, já ceifou mais de 450 mil vidas, uma mega aglomeração de falecidos, nem isso é capaz mais de levar as pessoas ao discernimento do que é certo e do é errado.
Talvez tenha sido isso que o Papa Francisco quis nos dizer, em tom carinhoso, sorridente, no meio da semana, referindo-se a nós, brasileiros: “Não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração”. Ao lembrar da cachaça, ele pensou certamente na nossa bebida forte que embriaga e que leva o consumidor rapidamente à alienação das coisas e a se esquecer da realidade. Já pouca oração tem mais a ver com o descrédito moral que muitos assumem diante da própria vida, levando-se em conta que a vida é uma dádiva no universo, uma ocorrência espetacular, que não deve ser desprezada.
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