Caxias, no Maranhão, inicialmente como Vila (1811) e depois como Cidade (1836), alcançou finalmente, na última terça-feira 1º de agosto, 200 anos de adesão à Independência do Brasil, e dentro da semana que se inicia, na quinta-feira, 10, comemorará também 200 anos do aniversário de nascimento do seu maior vulto literário, unanimidade nacional da poesia romântica, Antônio Gonçalves Dias.
Sem dúvida, são duas efemérides que ao longo tempo serão lembradas pela geração de agora e pelas gerações futuras, pois não há como se ignorar fatos de tão grande significado para os caxienses. Gonçalves Dias, que já começou a ser referenciado com sarais literários pelos logradouros públicos e ruas históricas da cidade, decerto será alvo de mais manifestações no correr desta semana. Então, é necessário que nos voltemos nesse instante aos acontecimentos da época do 1º de agosto de 1823, para que os leitores possam entender porque a data é de tal importância que chega até a confundir as pessoas em relação ao aniversário da cidade, cuja data de emancipação aconteceu somente em 05 de julho de 1836.
O 1º de agosto de 1823 que está emoldurado na bandeira oficial do município reflete um momento ímpar e sem precedentes na história da Princesa do Sertão Maranhense, porque foi uma época decisiva para sua consolidação como urbe maranhense. Em vila que era dominada por população de origem portuguesa, tomar conhecimento de que nas províncias do Ceará e do Piauí tropas haviam se unido a independentes, onde Oeiras passara a ser o centro nervoso de comando da província vizinha, levando, uma a uma, as vilas irem se incorporando ao governo do Imperador Dom Pedro I, levou os caxienses a uma situação de pavor.
De acordo com o historiador cearense Visconde Vieira da Silva (1828-1889), já em fins de março de 1823 os patriotas do Piauí atravessaram o rio Parnaíba, ocupando a povoação de São José de Matões, onde foi proclamada pela primeira vez a Independência em solo maranhense. A presença de tropa rebelde no flanco caxiense alarmou o Coronel Pinto de Magalhães, chefe militar da Vila, que, a 31 de março enviou um destacamento comandado pelo capitão Joaquim Abreu Guimarães Picaluga, a fim de dizimá-la. Ocorre que este militar, acometido de doença ou simulando-a, projetara partir para São Luís, tendo até ordenado o preparo de uma acomodação num barco do comerciante Lourenço de Castro Belfort com aquela finalidade. E foi então que os portugueses de Caxias lograram a ponderar para o comandante que sua retirada traria funesta consequência à defesa da Vila.
À essa altura, o destacamento que fora mandado a São José de Matões recusou-se a marchar, pois não dispunha de bandeiras, e até porque seus soldos estavam atrasados em mais de um semestre. Com o major José Demetério de Abreu no lugar do coronel Pinto de Magalhães, a tropa insubordinada recebeu proclamação a respeito das desastradas consequências daquele ato de rebeldia, não apenas para ela própria, como para o contexto da situação, que, de ruim tornara-se péssima, conforme expôs o jornalista coelhonetense, advogado, promotor público e desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão, Milson Coutinho (1939-2020), em seu livro “Caxias das Aldeias Altas – Subsídios para a sua história”.
Em face dessas ponderações, e até mesmo com a promessa de que seriam perdoados caso marchassem para combate, os soldados até concordaram em fazê-lo, mas desde que tivessem permissão para despedir-se do antigo comandante, fato que aconteceu, mas que em nada mudou em relação a seguir com a marcha ordenada. Os soldados chegaram à conclusão de que seus comandantes os “queriam meter na boca dos tubarões”.
Enquanto isso, no lado das tropas de independentes, houve mais tempo para arregimentação de forças, armas, e traçar planos de investida sobre Caxias, que era de onde entendiam que se abririam as portas para o avanço rumo a São Luís.
Segundo Coutinho, o pavor, então, tomou conta da Vila de Caxias, e, consternados, seus habitantes iniciaram um êxodo sem precedentes, arrebanhando, às pressas, o que pudesse ser mais útil na escapada nervosa, por quantas veredas e saídas se contassem. Além do mais, as coisas não ficariam apenas nesse pé, já que os soldados rebeldes, a maioria, brasileiros, passaram a hostilizar os lusitanos residentes em Caxias, apelidando-os de “puças”, “pés-raspados” e “marinheiros”. Nos becos e travessas da Vila amanheciam pasquins de todos os matizes, concitando o povo à rebelião, na tentativa de armar o espírito popular para a adesão.
O jornalista deixou claro que em princípio de abril de 1823 os mais abastados negociantes de Caxias fizeram embarcar em caixotes os seus pertences, todos buscando a capital da Província, em face da insegurança reinante na Vila. Em seu entendimento, não fosse a rigorosa proibição da saída, em massa, da população da Vila, esta teria ficado entregue ao mais completo abandono, deserta mesmo de pessoas.
Por outro lado, os poucos cidadãos que foram obrigados a ficar, ora dormindo em tocaias, ora embrenhados nas matas vizinhas, representaram à Câmara caxiense, que já estava em atividade desde fevereiro de 1813, no sentido de que a corporação legislativa concitasse o coronel Magalhães a se retirar para São Luís, levando junto seus insubordinados, que, enfim, abandonou Caxias a 4 de abril, deixando na Vila apenas o Capitão Picaluga com 60 soldados, artilharia e munições existentes na praça de guerra.
A retirada do coronel Pinto de Magalhães, porém, não restabelecera a ordem na Vila. Ao contrário, os boatos, as pasquinadas, as ameaças de levante cresciam na medida em que os independentes acantonados em São José de Matões, que aderira ao governo de D. Pedro I, faziam crer que seria breve a marcha sobre Caxias. Somavam-se a esses fatos as disputas entre os dois partidos políticos digladiantes na Vila, um apoiando a Junta fiel a D. João e o outro cerrando fileiras com D. Pedro I, sendo dessa época as atas da Câmara de Caxias fiéis registradoras das queixas, denúncias, representações e querelas contra, principalmente, as demais autoridades. E as suspeitas maiores recaíram nas pessoas do Juiz de Fora da Vila, Dr. Manoel dos Santos Martins Velasques, natural da Bahia, bacharel por Coimbra, Juiz Togado em Caxias de 1822 a 1825, e do Comandante Geral das forças caxienses, acusados de ineptos, pela falta de energia de ambos.
Sem força para enfrentar os independentes, cuja tropa engrossava já do lado do Maranhão, o Comandante das Armas, Major José Demétrio de Abreu, pediu demissão do cargo, aceita pela Junta que já via na maioria dos seus chefes militares a sombra da suspeição, sendo substituído pelo Tenente Luís Manoel de Mesquita. Entretanto, se do ponto de vista militar as coisas voltavam aos eixos, do ponto de vista político tudo desandava na Vila. E foi, então, que estando praticamente em sessão permanente, a Câmara caxiense, até então leal ao regime português, muito embora já não houvesse unanimidade, oficiaria ao Major José João da Cunha Fidié, no Piauí, pedindo a sua vinda à Vila, a fim de que tomasse quartéis de inverno e defesa da praça.
Sentindo-se atraiçoado por Manoel de Sousa Martins, futuro Barão da Parnaíba, Fidié aceita a reivindicação da Junta caxiense, por entender que era no Maranhão que repousavam as esperanças do soldado português, não só porque ainda havia um governo leal a D. João (futuro Rei D. João VI de Portugal), mas porque também seria o caminho natural para sua terra natal, em caso de derrota. Consta que o convite apenas teria reforçado seus planos, uma vez que não poderia mais alimentar esperanças de vencer os milhares de independentes que confrontavam sua marcha em todos os quadrantes por onde se movesse na região, mesmo tendo vencido a Batalha do Jenipapo, em localidade próxima à então Vila de Campo Maior (PI), em 13 de março de 1823.
Esgueirando-se pelos chapadões alagados entre o Vale do Parnaíba e o distrito de Caxias, a ponta de lança das tropas do Major Fidié, com um efetivo de 200 homens comandados pelo oficial de milícias Raimundo Ferreira da Silva chegou à Vila de Caxias em 8 de abril de 1823. Atrás desse grupo, na vanguarda do exército, vinha o Major Fidié, que alcançou o Vale do Riacho do Ouro em 15 de abril, e a 17 de abril, à frente da coluna de seus 700 combatentes, entrou solenemente em Caxias.
Na opinião de Coutinho, o exército de Fidié que chegara a Caxias não era uma legião de maltrapilhos e desmoralizados. Era um punhado de homens rígidos na disciplina, firmes no cumprimento do dever, e que vinham dispostos a acatar as ordens do seu general, vendendo caro a própria vida. E, assim, rapidamente Fidié logo tratou da fortificação da Vila, indo instalar-se no Morro da Taboca, hoje Morro do Alecrim, onde, com o auxílio da população, estabeleceu o seu Quartel-general e depósito de pólvora.
Não obstante, mal estabelecia os pontos de defesa, o comandante português se via forçado a fazer incursões armadas contra os independentes, como foi o caso de lograr embates contra os que novamente haviam atravessado o Parnaíba, à altura de São José de Matões, para ali requisitarem farinha e animais. Contra esse grupo Fidié enviou uma coluna de 90 homens, mas soube por um informante que era grande o número de rebeldes contrários, municiando, em seguida, nova coluna, desta feita de 160 homens, equipada com um canhão.
Ao amanhecer do dia 28 de abril de 1823, os independentes surpreenderam os legalistas na casa de um fazendeiro de nome Carvalho e dizimaram completamente aquela força de Fidié. Esta segunda coluna, vendo destroçada a primeira, não se aventurou a perseguir os independentes, batendo em retirada rumo a Caxias. O bom senso militar aconselhava ao Major que, ao invés de atacar, deveria defender-se. Começaria neste acontecimento a história do sítio de Caxias, que veio a efetivar a partir de 20 de maio, para o qual os independentes concorreram com uma força de 6 mil homens, embora a maioria armados de chuços e poucas armas de fogo.
Em São Luís, os temores se exarcerbavam e a Junta de governo do Maranhão cuidou de enviar reforços para Fidié, representados por dinheiro, munições, fardamento, armas e oficiais; mesmo assim sem exatamente saber o que fazer, em face da sucessão dos desastres de suas armas e da franca progressão dos independentes em todos os pontos da província. Em outras vilas, como na de Itapecuru-Mirim, a retirada dos soldados da sua guarnição para virem auxiliar Fidié antecipou a adesão a D.Pedro I.
Com junta de delegação expedicionária formada, os independentes cearenses, ao chegarem em Oeiras, logo entenderam que o inimigo, agora, era o governo do Maranhão. Essa junta, uma espécie de estado maior, se compunha do governador das armas do Ceará, José Pereira Filgueiras, do presidente da Junta Provisória do Piauí, Manoel de Sousa Martins e do governador de armas da Província do Piauí, Joaquim de Sousa Martins, além de Tristão Gonçalves Pereira de Alencar e Luiz Pedro de Melo César.
Os expedicionários brasileiros que faziam o cerco a Caxias sabiam que o Major Fidié estava com suas tropas desfalcadas, não dispondo, sequer, de água, munições e armamentos suficientes para o combate. A Vila era uma desolação só, com a população acotovelando-se no Morro das Tabocas, misturada aos militares. A Câmara começava a temer pelas consequências do ato impensado e inútil da resistência, porque as circunstâncias indicavam ser absolutamente impossível a vitória das armas do major português.
Apesar da situação, Fidié, pela honra militar, optou pela tentativa, lançando-se à frente de 400 homens contra a verdadeira barreira humana que cercava Caxias. Mandou os canhões abrirem fogo no dia 19 de julho e entrou numa luta que durou cerca de cinco horas, até que, às seis horas da tarde se retiraram em boa ordem conduzindo os feridos e deixando apenas nove cadáveres no campo de batalha.
Após dois meses de sítio, o Capitão-Mor José Pereira Filgueiras, presidente da Junta da Delegação Expedicionária e Comandante-em-chefe do Exército Auxiliador, dirigiu aos caxienses uma proclamação nos seguintes termos: Habitantes de Caxias. Que delírio é o vosso! Que anjo destruidor dirige a vossa razão obstinada! Um poderoso Exército está sobre as vossas cabeças, impaciente de entrar na vossa desgraçada vila e vingar a ferro e fogo o sangue inocente de tantas vítimas que a vossa teima, aliás o desassisado furor de alguns que desgraçadamente acolheis em vossa recinto e que para infelicidade vossa influem no vosso regime e Governo, tem sacrificado à desordem, à anarquia e ao pérfido egoísmo para verem se, por este modo podem atrair e entregar os mais sabrados dos vossos naturais interesses ao titânico despotismo das cortes de Lisboa … Este Exército, pois, espera só a voz de seus Chefes para avançar e reduzir-vos a cinzas. Mas a humanidade retém ainda as suas mãos vagarosamente em assinar o fatal edito da vossa condenação que se lembra que sois brasileiros e parte integrante do vasto Império do Brasil cuja Independência defendemos à custa das nossas vidas e fazendas e parece que a Providência Divina ajuda e dirige todos os nossos esforços”.
Pedindo ponderação aos caxienses, os sitiantes também deram conhecimento que grande parte da Província do Maranhão já havia aclamado o Imperador Constitucional D. Pedro I, e que as armas vencedoras já estavam posicionadas em toda área da província. “Ponderai, portanto, com toda a prontidão, e decidi-vos enquanto o raio da desgraça que está muito iminente, não descarrega sobre vossas cabeças. Entrai em vossos deveres depondo as vossas fratricidas armas para vos unirdes à causa de vossos concidadãos do Brasil”.
Espalhada a proclamação entre os habitantes da Vila, o Chefe rebelde Pereira Filgueiras dirigiu-se igualmente ao renitente Fidié, enquanto a Junta Expedicionária correspondia-se com a Câmara de Caxias. A data era 29 de julho, e o assunto era o mesmo: rendição, por inexequível qualquer reação válida por parte dos legalistas lusitanos. Mas os termos de um ultimatum sobre o fim da luta somente foi costurado ao longo de muitos dias, com os sitiados fazendo requisições sorrateiras para abastecimento de farinha, lenha, água e mais utilidades, tentando continuar a luta, fato que só foi contornado com a ameaça do exército sitiante de marchar sobre a vila. Os sitiados chegaram a oferecer um documento com dez demandas ao exército sitiante, proposições assinadas pelo Tenente-Coronel Comandante Geral Luís Manuel de Mesquita. Em 31 de julho, reunido o conselho da junta sitiante, foram rejeitadas as proposições do coronel Mesquita, assunto que evidenciaremos em outro artigo, bem como a proposta dos sitiantes.
Enfim, não satisfeito com a dureza da imposição, considerada humilhante ultimatum, o vereador Coronel Luís Manoel de Mesquita voltou com novas propostas aos sitiantes, onde, em resumo, pedia: que os oficiais de linha que não desejassem jurar a Independência poderiam viajar livremente para São Luís com suas famílias e pertences; que pelo mesmo modo poderiam sair todos os habitantes de Caxias (eupeus ou brasileiros); que os prisioneiros que não quisessem jurar a Independência seriam igualmeente livres para se retirar da Vila; que se concedessem três dias para os arranjos necessários à retirada.
O documento foi datado de 31 de julho de 1823, no Quartel do Morro da Taboca, e a essas proposições finais assentiram os vencedores, entrando as tropas em Caxias a 1º de agosto de 1823, felizmente, sem derramamento de sangue. Invadida a vila por milhares de homens cansados, maltrapilhos, feridos, barbados, em completo desalinho e com aspecto de ferocidade estampada no rosto, o Comando subiu o Morro da taboca. Com o respeito que sua patente e coragem destemida estava a exigir, o Major Fidié foi imediatamente preso e enviado para Oeiras. Instalado o governo provisório instalado pela junta, fez esta divulgar imediatamente uma laudatória proclamação,onde se dizia que haviam vindo ao Maranhão “quebrar os ferros que o despotismo pretende, ainda agora, rebater nos vossos pulsos”.
Medidas punitivas e de segurança foram também decretadas pela Junta no sentido de que a ordem fosse mantida, respeitada a propriedade privada e garantida a liberdade individual. Os chamados cabeças, todavia, seriam presos, sendo logo recolhido o Vereador Luís Manoel de Mesquita, já com assentimento da Câmara, que concordou, inclusive, com a nomeação do novo Comandante Geral. A tropa de Fidié, prisioneira, ficou acampada num quartel dentro da Vila, sob o comando do Sargento-Mor do Pará, Inácio Antônio da Silva.
Foram expedidas ordens no sentido de que o povo em geral fosse notificado de que a Independência seria ali proclamada e, com efeito, a 3 de agosto de 1823, onde reunia-se a Câmara caxiense. Um requerimento do Vigário foi submetido a votação, no sentido de que outra Câmara fosse eleita, com o que concordou a Junta, marcando-se para 6 de agosto a eleição dos novos camaristas de Caxias.
Os fatos que se sucedem e retratam a época são muitos e não é possível descrevê-los todos apenas na crônica que estamos proporcionando aos nossos leitores e leitoras. No entanto, pelas narrativas que expomos, é possível entender porque a data de 1º de agosto é tão importante para Caxias, sobretudo porque foi o instante em que o brado da liberdade superou a força estabelecida, marco que se tornou o estilo e o modo de viver dos caxienses, que passaram a conduzir nas mãos o seu próprio destino.
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