Dia desses fui surpreendido por um fato inusitado aqui em Caxias: flagrar um jovem lendo um livro no ambiente de trabalho. Não vai aqui qualquer censura ao comportamento, pois encontrar um jovem lendo uma obra impressa é sempre uma sensação admirável nos dias de hoje, em tempos de smarthphones e tablets como opções de leitura, porque a atualidade prefere dar preferência às short answers, ou textos de resposta curta, às pesquisas realizadas por meio cibernético. Talvez seja exagero o que estou refletindo, porque esses aparelhos também são capazes de reproduzir até livros inteiros, ao gosto ou ao interesse do leitor.
Pois bem, mas voltando ao flagrante que citei, meu interesse e satisfação pelo acontecimento foram de imediato substituídos por um misto de estupefação e descontentamento, ao identificar o que o jovem estava lendo. Não era uma peça que versasse sobre história, literatura caxiense ou maranhense, um grande sucesso do romantismo da língua portuguesa, ou um ensaio filosófico, estilo que certamente todo estudante gosta de invadir, buscando solidificar a sua personalidade e conhecimentos.
Não. O que a pessoa trazia como companhia de algibeira, tanto que ao manuseá-la inadvertidamente a deixara sobre uma cadeira, era um ensaio sobre a vida de Adolph Hitler, o ditador austríaco nazista da Alemanha que se suicidou no início de 1945, por não suportar o fato de ter perdido uma guerra mundial que ele mesmo iniciara na Polônia, em 1º de setembro de 1939, e que deixou um legado, somente na Europa, de 40 milhões de civis mortos, e mais de 20 milhões de soldados, a metade deles russos, que também perderam a vida.
Fiquei a me perguntar que interesse teria um jovem de hoje em procurar saber sobre a vida desses que são considerados os maiores monstros da humanidade. Sim. Porque que ler sobre Hitler, Stalin, Gêngis Khan, Nero, Kadafi, Sadam Hussein, e muitos outros assassinos em massa de triste memória, não há nada a aprender no mundo de hoje, a não ser o gosto pela maldade, apreciar as trevas ao invés da luz.
Bem, podia ser que a leitura esteja servindo de elemento comparativo sobre o que vem fazendo no momento o russo Vladimir Putin em sua guerra criminosa e covarde contra a Ucrânia, que dispensa até as propagadas fake news de hoje, dado que o mundo inteiro assiste via satélite a destruição das cidades e do povo ucraniano e não vê uma só cidade russa recebendo também o mesmo castigo.
E fiquei a matutar porque o interesse não teria caído sobre os clássicos, o teatro grego, ou a famosa coleção Os pensadores, editada pela Abril, ou a filósofos mais modernos, como Hermann Hesse ou a judia Hannah Arendt, a professora que sobreviveu aos campos de concentração nazistas, detentora, portanto, das avaliações mais profundas acerca do holocausto promovido na Europa por Hitler?!!! A autora de A Banalidade do Mal bem que poderia ter servido para arejar a cabeça desse jovem que procura entender Hitler. E Hitler só deve encontrar parâmetros entre aqueles que não souberam lidar com frustrações e acabaram por adoecer mentalmente em virtude disso.
Hannah entende que a 'banalidade do mal', nome de uma de suas obras mais famosas, está no fato de que pessoas comuns, fazendo atividades comuns, vivendo suas vidas comuns, podem estar impulsionando o movimento das engrenagens do horror na sociedade, ainda que estas não tenham conhecimento disso. Segundo ela, a banalidade do mal é o fenômeno da recusa do caráter humano do homem, apoiado na recusa da reflexão e na tendência em não assumir a iniciativa própria de seus atos.
Então, mesmo sem maiores conhecimentos sobre a vida do leitor, fui levado ao raciocínio de que ele estava sendo mais uma vítima dessas mensagens negativas que pululam agora nas redes sociais, muitas das quais desvirtuando a realidade, fazendo apoios a personalidades bizarras, desmoralizando figuras históricas de moral e comportamento exemplares, ou propagando mentiras exatamente ao estilo do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, que cunhou a infeliz expressão de que uma mentira dita muitas vezes, mil vez se possível, acaba se tornando verdade para quem a ouve tanto.
O pior, que se constata nesse quadro, é que os jovens hoje estão se educando dentro de um contexto dicotômico no qual ideias negativas claramente vem ganhando relevância sobre posicionamentos iluminados. Lendo na grande imprensa do país, um jornal de São Paulo (capital), colhi de um professor de história da arte da Universidade de Campinas (Unicamp), Jorge Coli, que os tais ataques a escolas no país são sintomas de nazifascismo incubado.
O mestre ilustra sua argumentação a partir de um vídeo que circulou nas redes sociais onde aparece um aluno troçando do seu professor, desmoralizando-o mesmo, e depois, juntamente com os colegas cúmplices do feito, postando-o nas redes sociais, da mesma forma como as novelas de televisão atualmente revelam esse tipo de comunicação no seio da juventude adolescente.
Na agressão, a mesma que os apaixonados por esse tipo de coisa querem que prossiga, impedindo, por exemplo, a aprovação do projeto contra as fakes news que tramita no Congresso Nacional, o aluno, primeiro, puxa cadeira, e por pouco o professor não cai. Depois, vira a mesa no chão e derruba o laptop do professor, que é um homem grisalho e de barba branca. À volta, outros alunos admiram a “proeza”: uma das meninas, em particular, se dobra de rir.
Ah!, mas isso geralmente costuma acontecer nos bairros periféricos mais desestruturados do país, alguém vai dizer. Não. O caso ocorreu na Escola Estadual Professor Carlos Alberto de Oliveira, no centro da cidade de Assis, no estado de São Paulo, local, segundo o professor Coli, onde os indicadores assinalam que, no seu conjunto,os estudantes dessa escola provêm de famílias acima da média nacional do INSE (Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica), e a maioria deles com pais ou responsáveis que completaram o ensino médio ou o superior. Quer dizer: fazem parte de uma boa classe média, em uma boa cidade de uns 100 mil habitantes.
Não se trata, portanto, de periferia perigosa, em que a violência é o pão cotidiano. Ela surge de um meio educado, não de um ambiente miserável, em que tudo falta.
Para o mestre da Universidade de Campinas, de imediato, aquele vídeo indica que o espetáculo dado pelo aluno não é o de uma pulsão agressiva ou descontrolada, mas de um ato calculado. Ele gira à volta do professor como se aquilo fosse um teatro; o aluno tem um público, que participa e pactua com ele. Registrado pelo celular, esse espetáculo se transforma em filme e, na internet, o público se amplia de modo desmedido. A crueldade local, que se quer comédia, circula e termina publicamente condenada.
Nesse caso de Assis, prossegue o professor, a violência afirma uma convicção de superioridade, demonstrando dominação sobre o outro, do aluno sobre o mestre. Violência e violar são palavras de mesma etimologia. Violar é estuprar, é invadir aquilo que é próprio ao outro, é submetê-lo. As adrenalinas e as endorfinas do ato violento, acompanhadas pela excitação de se exibir como um herói em um meio que valoriza a agressividade enquanto sinal de força e poderio, decerto ofereceram àquele adolescente uma embriaguez intoxicante de prazer.
Assim, os incidentes violentos em escolas têm aumentado. Crianças e pessoas foram atacadas em Santa Catarina, em Goiás, no Ceará, aqui em Caxias, e uma professora foi assassinada em São Paulo. São abomináveis sintomas de uma sociedade que adoeceu graças a um nazifascismo larvar. Observe que até em países mais evoluídos da Europa, como na Espanha, a paixão das torcidas estão provocando cenas deploráveis de racismo. O último espetáculo do gênero aconteceu no fim de semana passado quando boa parte da torcida do Valência, gritando em uníssono a palavra macaco, confrontou o nosso craque de futebol Vinícius Júnior, visando humilhar e descontrolar, como de fato aconteceu, o maior craque da atualidade do campioníssimo Real Madrid. Hitler e os nazistas fizeram coisa semelhante quando se retiraram do Estádio de Berlim para não entregarem medalhas de ouro ao atleta negro norte-americano Jesse Owens, em 1936.
Se as populações periféricas convivem com esse tipo de problema, por conta das dificuldades materiais, a classe média em sua maioria, vestiu a camisa das violências intolerantes e seguras de si na sua superioridade. Coli afirma que quando fala de superioridade, não significa que ela seja de fato superior. Ao contrário, a vulnerabilidade da classe média reside no medo de perder o que possui.
E segue explicando que por essa razão, ela busca, para si mesma e para os outros, os sinais exteriores de sua própria relevância, que vão de roupas e acessórios de marca, dos carros que favorecem a vaidade rasa, ao desprezo expresso em relação aos inferiores - entre eles os professores, com seus salários baixos - ou aos que ela sente como tais, desprezo que atinge seu paroxismo na violência desencadeada. São atitudes próprias a uma classe média arrogante que carece de qualquer projeto civilizatório.
Por fim, ele expressa também que o "big brother" proposto pelos deputados é paliativo de urgência que mal arranha a superfície de uma corrosão infinitamente mais profunda. Não corrige nada, porque o mal está na perda da consciência civilizatória, da convicção que o conhecimento é a base da civilização.
Ao contrário disso, o conhecimento levanta-se como um entrave às afirmações brutais, às escolhas truculentas, aos negacionismos estúpidos, que alimentam o nazifascismo velado. O conhecimento se opõe à falência da civilização. Não é por acaso que as escolas tenham sido alvo de tantas agressões.
Para mestre de história da arte, até o ano passado, o Brasil foi dominado por um nazifascismo que se aboletou no poder, franco, direto, exposto, que não disfarçava seu projeto de barbárie. Por pouco ele não se prolongou; e se dependesse do interior do estado de São Paulo, se dependesse, por exemplo, da cidade de Assis, estaria ainda no comando federal.
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