Caxias-MA 22/11/2024 20:50

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Wybson Carvalho

Recanto do Poeta

Um Gonçalves Dias desconhecido: Meditação


Gonçalves Dias:
o poeta na contramão

Em tempos que o Brasil parece ter adquirido outro status no espectro internacional, econômica e politicamente, uma obra que retome sua condição precária durante o Segundo Reinado, sob o jugo do complexo agrário-escravocrata, pode soar algo deslocada. Porém, a análise de Meditação, obra de Gonçalves Dias, empreendida pelo professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal de São Carlos, Wilton José Marques, vai além da referência às contradições da época, supostamente soterradas em um passado distante, jogando luz sobre as próprias dualidades do processo social brasileiro presente. O autor, não bastasse trazer à tona uma obra desconhecida do autor maranhense, injustamente reduzido a “poeta nacionalista”, propõe uma análise interessante, em diálogo com a história e a sociologia, que desvela o chão histórico da época, com o norte na constituição da sociedade brasileira.

A Meditação de Gonçalves Dias insere-se na linhagem romântica do texto em fragmentos, evocando reminiscências de A voz do profeta, de Alexandre Herculano, e de Palavras de um crente, de Lamennais. Dividida em três capítulos, a obra se desenvolve em torno de um diálogo entre um jovem, narrador, e um velho, que versa sobre a situação presente e as projeções para um país, que se infere ser o Brasil. O velho e o jovem apresentam-se em contraposição, o primeiro representando a voz da experiência e do ceticismo, que desvela as contradições do tempo, o segundo, o otimismo patriótico e o entusiasmo romântico com as possibilidades do país. O texto não se dá apenas no diálogo dos dois personagens; o velho possui o poder de, ao toque de sua mão sobre os olhos do rapaz, fazê-lo vislumbrar os quadros do país, quando sua narração efetivamente começa.

O texto apresenta uma visão pessimista sobre o país, vinculando-o a imagens de atraso, dependência, corrupção, ligadas ao quadro político e econômico da época. A novidade da obra é constituir-se como uma dura crítica à escravidão, feita sob critérios basicamente econômicos, em tempos de abstenção dos autores românticos sobre o tema. Ancora-se, assim, numa ânsia por contribuir, literariamente, para alçar o país à civilização moderna, com o horizonte fincado nos países europeus, possibilidade que seria somente possível com o fim da utilização de mão-de-obra escrava. Como Marques nos lembra, o texto sofreu cortes – possivelmente por censura – em sua publicação na revista Guanabara, em 1850, tendo obtido, além disso, parca repercussão. Trata-se, em suma, de uma obra que se encontra na contramão das expectativas do romantismo semioficial brasileiro, ligado à construção de símbolos e de um passado mítico para a afirmação da nacionalidade, sob a proteção do próprio corpo político na empreitada.

Marques analisa detidamente os capítulos do livro, vinculando os quadros apresentados às influências estéticas e filosóficas de Gonçalves Dias para a confecção do texto, bem como apresenta a correlação necessária entre eles e seu pano de fundo histórico. Soma-se à influência de Lamennais e Herculano a filosofia da história de Herder – advinda, possivelmente, da influência do autor português sobre Gonçalves Dias –, que dão o chão estético no qual se estabelecerá a crítica ao sistema escravista. Ainda, lança mão de variadas contribuições da história e da sociologia, que proveem o substrato teórico das interpretações e das referências constantes do texto ao Brasil oitocentista.

Gonçalves Dias

A possibilidade de crítica à escravidão, em momento adverso como era o período de meados do século XIX, de consolidação do Segundo Reinado, quando o romantismo de tom nacionalista ainda estava na ordem do dia, ganha traços ainda mais especiais quando se nota que o poeta dependia, como praticamente todo homem livre destituído de propriedade em sociedade escravocrata, de favores ou concessões de um protetor, no caso, do Estado capitaneado pelas elites. Marques utiliza o conceito de Guerreiro Ramos de “dialética da ambiguidade”, que consiste na absorção, por parte do Estado que sustenta a ordem escravocrata, dos homens livres que não poderiam se encaixar em outra ocupação, devido à quase inexistência do trabalho livre. Desse modo, a burocracia estatal garante o emprego de uma camada de indivíduos que, não obstante, tem suas possibilidades de ascensão tolhidas pelo sistema de apadrinhamento. Essa relação de dependência, além disso, implica uma necessidade de aceitação do status quo, uma “cumplicidade cabisbaixa” (2010, p. 19), que dirimia as possibilidades de crítica ao sistema. A relutância que  Gonçalves Dias apresenta de se comprometer em um serviço público é, como afirma Marques, a própria “dialética da ambiguidade em ação” (2010, p. 35). Nesse sentido, na citação talvez mais emblemática do livro, Dias diz em carta ao amigo Teófilo Leal: “enquanto o literato carece de empregos públicos – não pode haver literatura que mereça tal nome” (apud MARQUES, 2010, p. 58). Nisso, o autor se posiciona frente uma questão de Roberto Schwarz: “como (…) conciliar a dependência, que era inevitável, com a autonomia, que era de rigor?” (apud MARQUES, 2010, p. 26) Gonçalves Dias, que publica a Meditação na Guanabara, evidencia que havia a possibilidade de “brechas” para a crítica, mesmo em tempos em que a literatura e a apologia nacionalista andavam de mãos dadas (2010, p. 89).

O realce, no entanto, está na maneira que a análise de Marques funciona, jogando luz sobre as contradições do tempo e as dualidades do presente, a partir da leitura de Meditação. Em nota de rodapé de Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Jr. afirma que certa feita um professor estrangeiro lhe dissera “que invejava os historiadores brasileiros que podiam assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado” (2000, p. 5). Nesse sentido, a análise das referências feitas em Meditação à situação brasileira da época, esclarece em muito as contradições atuais, mostrando que, se algo mudou, não houve o desembaraço de problemas matrizes presentes no processo social.

Nesse sentido, a dependência do intelectual frente ao Estado revela, para além do minguado trabalho livre, de um lado, sua posição marginal em uma sociedade com difícil acesso aos bens culturais e, de outro, a notória exclusão de um enorme contingente do saber formal. Guardadas as devidas ressalvas, este é um problema a ser resolvido, principalmente se se levar em consideração a pequena, face ao potencial que possui demograficamente, circulação de livros no país, ou ainda a intervenção quase nula do intelectual no debate público. A exclusão, deliberada ou não, de grande parte da população do acesso à educação e à cultura permanece, o que contribui para, mesmo com o avanço do voto universal, a manutenção do poder político nas mãos das elites, dispostas a conciliações.

O acordo tácito intra-elites notado por Marques no período (2010, p. 15), bem como os “conchavos noturnos” representados na obra, apontam também para essa possibilidade de, a partir do desvelamento das contradições do passado, perceber muito dos “vícios de formação” do processo social brasileiro, aos quais o velho de Meditação se refere. Em visão do mancebo, as palavras de um velho representam o que se imagina ser a visão das elites à época: “Curemos de nós somente, porque este é um século interesseiro e egoísta” (2010, p. 245). Estas palavras, ditas em um interessante trecho onde velhos – representantes das elites – estão em conluio, são comentadas por Marques como o escancaramento da “visão utilitarista que a elite local tinha (ou ainda tem?) sobre o Brasil” (2010, p. 246). Os parênteses soam desnecessários aqui, mas deixam clara a possível – e quase irresistível – aproximação com a vida política brasileira.

Baseado na interpretação de Benedict Anderson do nacionalismo, Marques utiliza o conceito de “comunidade política imaginada”, que se adéqua perfeitamente à leitura do texto. A Meditação seencontraclaramente em contraposição ao projeto nacionalista romântico, no que este tinha de homogeneizador, na tentativa de criar uma unidade e identidade nacionais. Desse modo, é desvelado o discurso das elites e sua visão sobre o país, marcando a divisão entre classes, entre elite e povo (2010, p. 203-204).  Ainda, pela contraposição entre o jovem patriota e o cético velho, os sentimentos nacionalistas – facilmente invocáveis – são mostrados no que lhes é destituído de conteúdo: uma visão falseadora, que não passa de “máscara do fingimento” (2010, p. 212), em sua tentativa homogeneizadora e encobridora de desigualdades, algo reconhecível enquanto ideologia, e, evidentemente, utilizado ainda hoje nos discursos do poder.

Wilton José Marques

Se Meditação está na contramão do romantismo nacionalista brasileiro, pode-se dizer, porém, que se encontra em concordância com a missão civilizatória da literatura no país. Sua crítica à sociedade brasileira baseia-se neste pressuposto, que inverte a tendência de uma literatura de exaltação do país, para uma depreciação de seu estado, com vistas a uma modificação. Marques nota, por exemplo, a diferença da visão da natureza primorosa brasileira, típica daquele romantismo, e a visão depreciativa de uma realidade e riqueza sustentada à custa do trabalho escravo. Comentando trecho segundo o qual um estrangeiro, às costas do Brasil, podia julgar ter errado o percurso, pensando ter dado em África, Marques diz que a visão de fora, tão importante para a constituição do tipo de projeto nacionalista na literatura, serve aqui de motivo para a crítica do país, e da escravidão em especial.

A simbologia notada por esse olhar nas precárias construções do país também se relaciona à crítica à escravidão. Marques remete as imperfeições que possuem as edificações construídas pela mão-de-obra escrava à própria precariedade da construção do país, cujo reconhecimento se dá, em Meditação, ao levantar do “tapete imaginário” (2010, p. 174), que cobria a realidade do país aos olhos dos escritores nacionalistas românticos. Se a obra tende, no primeiro momento, por meio da visão do velho, a uma visão equivocada – ainda que ao gosto da época –, de atribuir essa precariedade a uma tendência inata do negro, Marques lembra que, no limite, a culpa do atraso é de quem sustenta a escravidão. Além disso, o texto de Marques sugere, sobre esta passagem, ligada à contraposição entre a visão idealizada do romantismo e do que há sob o tapete, uma dualidade que acompanhará o país em sua formação: a ideologia mais banal de exaltação do país pela natureza, pela uberdade natural, pela beleza, e a visão do que há de mais precário e carente, em homologia, no processo social, entre a riqueza econômica e a extrema miséria, entre o moderno e o arcaico. Ora, se a culpa dessa contradição do país é atribuída, em última instância, a uma defesa do status por parte das elites, a quem, senão a elas, se poderia atribuir a continuidade desse processo excludente?

Poder-se-ia chamar isso, fazendo coro com o velho de Meditação, de “anomalia na ordem social” (apud MARQUES, 2010, p. 179), uma espécie de vício de origem na sociedade brasileira, que caberia ser contornado por uma nova consciência nacional, através da educação e da religião, abandonando o caráter servil de cópia de modelos estrangeiros. A resposta a esta questão não é certa; o livro de Marques, no entanto, sugere o reconhecimento da permanência de traços dessa contradição matriz da sociedade brasileira, como uma forma de disposição para a mudança. Nisso, perfaz o mesmo trabalho de Gonçalves Dias em Meditação: colocar à vista e ao entendimento as contradições sociais, ora encobertas por uma falsa exaltação, de modo a contribuir, no que é próprio de um texto, para transformá-las.

 Versão ligeiramente modificada da resenha publicada na Revista Teia literária, Jundiaí, n. 4, 2010.


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